Mudanças de padrões - partos no Brasil

Os ventos estarão mudando no cenário obstétrico brasileiro?


Por: Mari Zanotto (com a colaboração de Gabi Sallit)
em: http://minhamaequedisse.com/2013/04/os-ventos-estarao-mudando-no-cenario-obstetrico-brasileiro/
Esse post não é exatamente um post, e sim uma coletânea de referências sobre um assunto que está em pauta: a violência obstétrica e o modo como partos são feitos no Brasil. A ideia é ser um ponto de partida para que, no esquema "um-link-puxa-o-outro", mulheres (e homens, ora pois!) se informem e se preparem para as escolhas que vierem junto com a gravidez.     
Quem tiver mais sugestões de links sobre o assunto, mande para cá que a gente atualiza! 
A blogosfera me abriu os olhos para um bocado de coisas que eu encarava com a naturalidade do é assim que é. Eu fui a grávida típica que diz "quero tentar um parto normal", mas sem muita convicção. Pra falar a verdade, eu tinha certeza de que só teria cesáreas, assim como aconteceu com a minha mãe (que em suas gestações sucumbiu a dois clássicos:  a  "não-dilatação" e a "circular de cordão". Familiar para alguém?).
Contrariando as estatísticas, eu tive sorte: meu obstetra acreditou no meu desejo pelo parto normal e respeitou esse desejo. E assim tive os meus dois pequenos no hospital, em partos que já defini como "meio humanizados": com algumas intervenções que eu aceitei sem questionar muito e um tratamento cuidadoso com o RN (o que entendo hoje como parto Leboyer, confere?). De modo geral, sou muito tranquila e satisfeita com essa minha história. Mas, sabendo o que sei que hoje, posso apostar que  ela teria sido um pouco diferente...
Na primeira gravidez não questionei as práticas do obstetra: episiotomia, "sorinho" (ocitocina sintética), anestesia aplicada ainda no início da dilatação, necessidade de romper a bolsa artificialmente (o que só não aconteceu porque no exato instante em que ele disse isso minha bolsa fez PLOP!, acredite se quiser). Aceitei as intervenções e considerei que seriam para conforto e segurança de mãe e bebê. Mentira: até questionei a necessidade da episio, mas recebi de volta uma resposta científica que eu não tinha nenhuma chance de replicar. Ter lido muitas vezes que episiotomia era uma prática muitas vezes desnecessária não me preparou para lidar com uma justificativa médica bastante convincente para fazê-la (algo a ver com deslocamento da bexiga, pelo que eu me lembre). Segundo meu médico, esta é uma possibilidade bem pequena, mas séria - e portanto justifica o procedimento para minimizar os riscos. Como contraargumentar, se eu nem sabia que bexigas podem se deslocar? Minha pequena tentativa de sair do roteiro ruiu aí, derrotada pela falta de informação. (Texto da médica-obstetra Melania Amorim sobre episiotomia, aqui).
Na segunda gravidez, já mais informada, consegui estabelecer alguns limites e  desenhar um plano de parto. Até considero que as intervenções que ocorreram ("sorinho" e anestesia, dada mais tarde e em menor dose) foram escolhas minhas, tomadas de acordo com a informação que eu tinha na época. Mas sei que esta informação, embora maior, ainda tinha lacunas. Se  antes a ocitocina sintética me parecia apenas um recurso inócuo para acelerar um processo leeeento (por que não?), hoje entendo que ela não é de forma alguma igual à ocitocina natural e que essa substituição cobra um preço (matéria interessante da Pais e Filhos portuguesa sobre o assunto, aqui). Se antes eu não cogitava um parto sem anestesia, hoje eu consigo entender as motivações de quem faz (embora ainda não me veja no lugar delas, hoho!). Ainda não sei um monte de coisas, mas tenho certeza de que, se eu tivesse um terceiro filho agora, o meu plano de parto seria bem diferente.
Informação é a coisa mais importante do mundo quando estamos grávidas. Sem ela, somos vítimas fáceis do sistema obstétrico praticamente industrial que impera no Brasil hoje. Um sistema que desumaniza, despersonaliza, leva frieza ao momento que poderia ser um dos mais calorosos de nossas vidas. Eu descrevi uma história relativamente tranquila, mas ela nem se compara às histórias de horror que muitas mulheres relatam ter vivido durante seus partos. Indico muito a leitura dessa reportagem, fundamental para quem quer se informar sobre violência obstétrica e o sistema de partos que existe no Brasil hoje: Na hora de fazer não gritou, por Andrea Dip

Pois bem. Há alguns dias estive na exibição fechada do filme "O Renascimento do Parto" (ainda sem data de lançamento). O filme é uma porrada. Mostra o que o paninho azul esconde, o que as luzes do centro cirúrgico ofuscam, o que o circo das lembrancinhas, equipes de filmagem e telas de plasma abafa: partos sendo feitos de maneira assustadoramente violenta.
Mostra o que a mãe, em posição horizontal e muitas vezes com pernas amarradas, não vê: uma tesoura cortando seu períneo, rotina na maioria dos partos normais hospitalares.
Mostra a agressividade de uma cirurgia cesariana e como é um espanto que ela tenha sido tão banalizada. (Texto da Anne sobre o impacto de ver a cesárea, aqui)
Mostra - e é um choque! - o manuseio pouco cuidadoso do recém-nascido. O afastamento do corpo da mãe, as pálpebras forçadas com os dedos, a interminável sonda enfiada nariz adentro, os inacreditáveis tapas no bumbum (que eu sempre considerei que eram apenas uma lenda pitoresca, mas nunca, em hipótese alguma, uma prática de um médico contra - a palavra é essa - um bebê que acabou de nascer.)
É sempre assim? Claro que não. Mas acontece, e não é raro.
O filme escancarou para mim duas distorções muito malucas: um momento de afeto e delicadeza tratado como linha de montagem; e um processo fisiológico virando evento médico a priori, mesmo sem necessidade. E o mais maluco de tudo: a gente se acostumou. É assim que é.
Ao fim da sessão estávamos todos emocionados e, sobretudo, otimistas. Sentimos que estava ali uma chance preciosa de  mudar esse cenário. A violência obstétrica já está em pauta há algum tempo, mas VER a violência faz muita diferença. Impossível não ser tocado pelas imagens, e também pelas falas de mulheres que foram desrespeitadas ou profissionais que lutam por partos mais humanos.
O filme está em fase de distribuição e ainda não há previsão para o lançamento. Assim que uma data for confirmada a gente corre aqui para avisar!
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Mais boas novas, direto da caixinha de novidades da sempre informada Gabi Sallit (que, pra quem não sabe, é a advogada por trás da primeira ação judicial contra violência obstétrica no Brasil):
Desde 2011 o SUS faz uma pesquisa de qualidade relativa às internações na rede - atendimento ao parto incluído. Todo paciente recebe em casa uma CARTA SUS, com o valor dos procedimentos que realizou e um campo para avaliar o atendimento que recebeu. Obstetra fez uma intervenção sem avisar, enfermeira te tratou com desrespeito, tiraram seu companheiro da sala, te esqueceram sozinha no corredor? CARTA SUS neles! Boa notícia para quem acredita que o tratamento que parturientes têm recebido em seus partos precisa começar a mudar...




Outra iniciativa é a Ouvidoria Ativa da Rede Cegonha.
Mulheres que tiveram seus partos dentro da Rede Cegonha (uma estratégia do Ministérios da Saúda para melhorar a assistência ao parto, também vinculada ao SUS) recebem uma ligação e respondem a 38 perguntas sobre atenção à saúde no pré-natal, parto, pós-parto e saúde da criança, mais seis questões relacionadas ao perfil como idade, estado civil, escolaridade e renda familiar. As usuárias são escolhidas por amostragem e mais de 50 mil já foram entrevistadas.

Tudo isso me faz constatar, com alegria, que o tema da violência obstétrica está em pauta e o cenário parece estar começando a mudar. É preciso se informar e denunciar atendimentos de má-qualidade. Esse post da obstetriz Ana Cristina Duarte ajuda a identificar a violência. Esse outro da Gabi orienta sobre como denunciá-la.

Por fim: a intenção desse post não é defender este ou aquele tipo de parto. Defendemos que mães e pais tenham o direito de escolher como querem ter seus filhos. Mas que seja um escolha de fato, baseada em informação de qualidade. Então vamos pesquisar os prós e contras de cada modelo, confrontar os médicos (de lá e de cá), entender e assumir as consequências de cada escolha que fizermos. O que tentamos aqui foi estimular o primeiro passo, o que requer mais coragem, o que é um caminho sem volta: afastar os paninhos azuis que cobrem a visão.

Mais sobre o assunto:
Você quer um parto normal? pergunte-me como!
Vídeo Violência Obstétrica, a voz das brasileiras
Mapa da Violência Obstétrica - site que recebe denúncias de abusos no parto
1:4 - retratos da violência obstétrica - projeto fotográfico que busca materializar as marcas invisíveis deixadas pela violência obstétrica

E para quem está procurando um atendimento humanizado ao parto mas não sabe onde encontrar em sua cidade, vale conferir a lista de grupos de apoio ao parto no Brasil, apoiados pela rede Parto do Princípio.

Mari é mãe de Alice e Lucas, autora do Pequeno Guia Prático para Mães sem Prática (que não é um guia, nem é pequeno, nem é mais de uma mãe sem prática, ok? Tudo mentira!) e uma das editoras do MMqD.